25.8.14

Destruição Criativa, Caos Planejado


Quatro anos atrás comecei um blog sobre arquitetura e urbanismo com intuito de esclarecer dúvidas: pensamentos que, sendo escritos, podiam ser organizados, além de colocados à prova da humanidade ao serem publicados na internet. O ‘Rendering Freedom’ aprofundava temas que não eram abordados com a devida importância nem no ambiente acadêmico nem no trabalho (ou nenhum outro lugar, pra falar a verdade), mas que tinham grande impacto no futuro da cidade.

Com tempo percebi que eu não estava sozinho: o cidadão brasileiro – nem mesmo o arquiteto urbanista - não tem um caminho acessível para adquirir informação sobre como funciona o ambiente urbano, que soluções são viáveis e que políticas são as mais eficazes.

As atuais referências em língua portuguesa são superficiais demais, técnicas demais ou ideológicas demais: a fonte do meu aprendizado foi, em grande parte, uma vasta blogosfera internacional da qual o Brasil não faz parte.

Faltava um lugar onde um qualquer um – seja leigo, entusiasta ou urbanista – pudesse entrar e facilmente encontrar referências acessíveis mas sólidas pra qualquer assunto urbano. É hora de acabar com os ‘achismos’ ou as ‘tendências’ urbanas (às vezes ultrapassadas há mais de um século) que norteiam o pensamento do cidadão brasileiro.

Isso me levou a uma ‘destruição criativa’: terminar o blog que me inspirou a aprender sobre a cidade pra continuar escrevendo em uma nova plataforma, totalmente redesenhada e, principalmente, junto com os melhores colaboradores que eu poderia encontrar.

Assim, lanço aqui o novo ‘Caos Planejado’, um site composto por arquitetos, urbanistas, economistas, estudantes, empreendedores sociais, empreendedores imobiliários e, ainda, um engenheiro de transporte. São pessoas de competências totalmente diferentes mas totalmente complementares e indispensáveis para nossa compreensão do ambiente urbano.

Nossa proposta é ter textos acessíveis mas tecnicamente embasados, críticos mas ideologicamente isentos. Nosso interesse é a cidade: se for o teu também, te convido a ler o Caos Planejado.

7.7.14

A cota não tão solidária do Plano Diretor de São Paulo

Esta semana foi aprovado o novo Plano Diretor de São Paulo. Considerado um marco do governo Haddad na metrópole, o texto traz uma série de mudanças radicais e inovadoras considerando o atual cenário do urbanismo brasileiro. Por se tratar de diversos temas não usuais para o cidadão leigo, cada um deles terá uma postagem específica, sendo o primeiro sobre a chamada "Cota de Solidariedade".

Conforme descrito por Nabil Bonduki, relator do Plano na Câmara de Vereadores:
"Já utilizada em grandes metrópoles como Nova York, a cota [de Solidariedade] cria mecanismos de contrapartida na construção de empreendimentos de grande porte. A proposta é que imóveis acima de 20.000 m², destinem 10% do próprio imóvel ou de uma área na mesma região para a implantação de moradias de interesse social*, visando cumprir a função social da propriedade e da cidade."
A solução busca uma solução de curto prazo para o déficit habitacional de população de baixa renda inserido no meio urbano que, diferente do programa 'Minha Casa, Minha Vida', produziu moradias de baixa qualidade nas periferias sem acesso à serviços e infraestrutura. Ao mesmo tempo, busca um meio termo entre a produção imobiliária através do mercado e a já ultrapassada produção estatal de moradia ou o controle de aluguéis estabelecido pela ditadura de Getúlio Vargas, considerada a origem do surgimento das favelas em São Paulo.

Bonduki também está correto que a medida já é usada em grandes metrópoles: nos EUA a medida é chamada de "Inclusionary Zoning" ("Zoneamento Inclusivo", tradução livre), e tem crescente popularidade na política urbana visto que parece resolver a questão sem grandes problemas. No entanto, apesar de existir a desconfiança de alguns sobre a medida, há falta de textos que explicam que tipo de consequência negativa as Cotas de Solidariedade podem trazer. Ao contrário do entendimento de muitos, leis não são passes de mágica que produzem exatamente o resultado esperado pelo legislador, e esta não foge da regra.

Shaila Dewan, escrevendo para o The New York Times, comenta sobre a implementação da Cota de Solidariedade em Nova York (tradução livre):
"Nova York precisa de mais de 300 mil unidades até 2030. Por outro lado, a Cota de Solidariedade, uma política celebrada que obriga incorporadores separarem unidades para famílias de baixa renda, produziu meras 2800 apartamentos de baixo custo em Nova York desde 2005."
Exemplos como este se espalham nas cidades onde foram implementadas. Em Washington DC, por exemplo, as Cotas de Solidariedade foram aprovadas em 2006 exigindo incorporadores separarem 8-10% das unidades para interesse social em todos projetos com mais de 10 unidades. Até 2012 o programa de Washington não atingiu um único cidadão. Neste caso, as unidades lançadas simplesmente não eram um produto atraente para o morador de baixa renda. Localizados em bairros de alto padrão, não necessariamente próximos aos seus empregos, as unidades tendem a ser de um ou dois dormitórios, ainda pequenos para famílias que normalmente dividem seu espaço de moradia. Também há uma grande dificuldade de se conseguir um financiamento para essas unidades, dadas as altas taxas de inadimplência. No Brasil os financiamentos muitas vezes são subsidiados pelo poder público, como no programa MCMV, mas que terminam em graves problemas financeiros pela avaliação equivocada do risco do empréstimo.

Para implementar a política em larga escala também é necessária a fiscalização constante dos moradores, já que por serem imóveis de interesse social os moradores são obrigados a habitar aquele local para não correr o risco de perder o benefício. Para garantir que moradores não estão fechando acordos informais de sublocação é necessário uma vigilância constante do poder público, onde a privacidade e a liberdade do morador se tornam extremamente restritas para que ele esteja apto ao benefício.

É claro que, mesmo com esses problemas, aqueles que conseguirem unidades nas Cota de Solidariedade terão um prêmio praticamente de loteria, pois recebem construções boas a custos muito abaixo do preço de mercado. Mas há prejuízos escondidos com a medida para permitir que isso aconteça. Ao contrário do que se espera, incorporadoras não arcam o prejuízo de construir unidades fora do preço e da demanda do mercado. Assim, para permitir a viabilidade do projeto construindo essas unidades de interesse social, o preço das 90% das unidades sem controle de preços inevitavelmente terá que ser maior para compensar o prejuízo dos 10% "solidários". Ou seja, quem banca a Cota de Solidariedade são todos que não ganham nessa loteria.

A regra também acaba incentivando o mercado a construir prédios mais elitistas para poder cobrar este acréscimo, tornando-os ainda mais caros e aumentando a desigualdade dentro do prédio. O caso do 40 Riverside Boulevard em Nova York foi emblemático, onde fizeram uma entrada para "ricos" e outra para "pobres", explicitamente construídas para possibilitar a Cota de Solidariedade.

Para evitar o desgaste com esse tipo de política, o mercado imobiliário acaba produzindo menos unidades habitacionais em geral. Algumas construtoras já sinalizaram que o aumento das complicações levará a produção imobiliária para cidades adjacentes, como a região do ABC Paulista. Ainda, muitos incorporadores optarão por trocar projetos residenciais por comerciais, onde a Cota não se aplica, mesmo em áreas onde há demanda para habitação, piorando o déficit habitacional. Hoje São Paulo tem o maior déficit habitacional do país: são 700 mil famílias em domicílios inadequados.

Um estudo do SECOVI do ano passado estudando a implementação das ZEIS em São Paulo chegou a uma conclusão semelhante, de que empreendedores privados buscam áreas menos restritas e também tem receio da mescla de faixas diferentes de renda, temendo o chamado "contágio de mercado" e reduzindo o valor de venda dos imóveis de maior valor.
Copacabana: não foram legislações que deixaram o bairro "solidário", mas uma oferta expressiva de unidades.
Como já foi comentado em uma postagem anterior, a única maneira sustentável de promover a redução do custo dos imóveis de forma generalizada para resolver o déficit habitacional é de diminuir os custos de construção, e não aumentá-los com medidas como a Cota de Solidariedade. Como já identificado pelo economista Ryan Avent, cidades que permitem que o mercado imobiliário produza oferta suficiente para atender à demanda tem os preços de imóveis reduzidos, tendendo a se aproximar aos custos de construção: o chamado "equilíbrio de mercado".

O novo Plano Diretor anda vagamente neste sentido ao aumentar o potencial construtivo em algumas áreas, mas aumenta o custo da outorga onerosa (custo de construir acima da área permitida para o terreno) em até 25 vezes o atual, o que o SECOVI estimou que pode impactar em um aumento de até 70% no valor dos lançamentos dependendo da regiãoA urbanista Raquel Rolnik contrariou esta posição afirmando que o valor seria absorvido pelo proprietário do terreno, não pelos compradores. No entanto, tanto as incorporadoras já são proprietárias de um grande estoque de terrenos – repassando o custo às unidades – assim como a outorga mais cara restringe a construção de mais unidades.

Fora algumas áreas que tiveram seu coeficiente de aproveitamento** aumentado para 4, ao longo dos chamados "eixos estruturadores" atendidos por estações de metrô, o Plano não trouxe gradens alterações nos potenciais construtivos de forma geral. Para uma cidade global como São Paulo que enfrenta um enorme déficit habitacional o coeficiente é muito baixo, restringindo a oferta imobiliária nas regiões centrais (Hong Kong, Nova York e Seoul atingem coeficientes de 10).

Filtragem: o luxo não dura pra sempre.
Alguns podem pensar: "Mas mesmo assim o mercado imobiliário só construiria unidades voltadas para a classe média e acima, sem se importar com unidades de interesse social". No entanto, com oferta suficiente de imóveis ocorre o fenômeno da filtragem, bem explicada pelo economista Matthew Yglesias:
"Se vários imóveis de luxo são construídos em uma cidade, pelo menos parte dos seus moradores vão abandonar suas casas anteriores de outros lugares da região. Estas casas agora encontram-se livres para serem ocupadas por pessoas um pouco menos ricas. Com o tempo mais edifícios de luxo aparecem no mercado e os edifícios de luxo de ontem vão envelhecer e 'filtrar' as classes sociais."
A prova mais evidente desse fenômeno são os opulentes edifícios de centros históricos de cidades como Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo que, por estarem deteriorados, hoje são habitados predominantemente por moradores de baixa renda.

É necessário entender que não há solução mágica que consiga resolver este desequilíbrio entre oferta e demanda de imóveis de outra forma, que é contraintuitiva do ponto de vista do regulador: solidariedade de verdade seria simplesmente permitir a construção de mais unidades para resolver o déficit habitacional. Sem que isso ocorra, temos apenas uma "Cota" de Solidariedade, beneficiando alguns mas gerando prejuízos escondidos sob uma maquiagem de benevolência.

* Moradias com preço determinado pelo governo (praticamente uma tarifa, por não ser determinado através do processo de mercado) e destinadas especificamente a moradores de baixa renda, que não tem o direito de vender ou alugar a propriedade por um longo período (normalmente algo como 10 anos).

** Relação entre área construída e área do lote. Ex: Se o lote tiver 1000m² com coeficiente de aproveitamento 2 o proprietário poderá construir uma edificação de 2000m² de área.

20.6.14

Até os anos 70 o transporte público de San Francisco tinha concorrência

Esta é uma tradução do artigo "Up Until the 1970s, Muni Had Competition" de Rigoberto Hernandez e Andrea Valencia para o jornal Mission Local

A van original de Di Pilla com a jovem Michele em 1976. A foto foi cortesia da família Di Pilla, publicada no Mission Local
Poucos suspeitariam que a loja de presentes La Argentina, um lugar peculiar na 3230 24th Street, é parte de um pequeno império pare da história do Mission District: das vans privadas que enchiam San Francisco por grande parte do século 20, levando passageiros por toda a cidade e competindo com o Muni. 

As vans são particularmente relevantes essa semana já que passageiros procuram alternativas de transporte com a greve dos motoristas do Muni, o sistema municipal de transporte coletivo. A cidade já teve uma alternativa – as vans – e parte da sua história está ali na 24th Street.

Diferente dos ônibus das empresas de tecnologia, como os oferecidos pelo Google, eles não eram de graça, mas eram serviços privados visando lucro geridos por operadores independentes incluindo a família Di Pilla, hoje proprietários da loja de presentes.

No seu pico em 1950 cerca de 7 mil passageiros por dia pagavam 10 centavos por corrida nas vans privadas de acordo com o estudo do Centro de Transportes da Universidade da Califórnia chamado “Paratransit in the San Francisco Bay Area” (“Transporte Alternativa na Baía de San Francisco”, tradução livre). As vans eram vistas como veículos privados competindo com o Muni, mas a cidade começou a legislar contra eles.

Embora muitas das vans tinham sido substituídas por ônibus quando Michele Di Pila entrou no negócio nos anos 60, a rota do Mission ainda operava 24 horas por dia, sete dias por semana. Em 1970, Di Pilla, então com 39 anos, sentava atrás da direção de um deles, transportando passageiros de Daly City até o Embarcadero e de volta pela Mission Street.

Ele era conhecido como “Hot Wheels”, recorda sua filha Michelle, que trabalhava como cobradora. “O revendedor nos dava vans com 12 lugares e a a gente mudava o layout pra ter 20 lugares,” disse Di Pilla. “Tirávamos as poltronas de vans e colocávamos cadeiras de ônibus que comprávamos de ferros velhos.”

Para proteger o Muni, a cidade parou de emitir novas licenças em 1972. O último choque veio em 1978, quando eleitores passaram a legislação chamada “Proposition K” que eliminou a revenda das licenças de vans. O aumento das taxas de seguro também desencorajavam os operadores privados, e em 1983 Di Pilla e maioria dos outros operadores estavam fora das ruas.

Nesse período, Di Pilla já com 52 anos e sua esposa argentina, Marcela, já estavam investindo no mercado imobiliário. Michelle, que tinha ido aos Estados Unidos através de uma bolsa de estudos Jacqueline Kennedy para processamento de dados (o equivalente à TI nos anos 50), disse para sua mãe que era boa com números.

Quando um colega imigrante italiano quis vender um edifício com 14 salas na 2347 24th Street, eles compraram. Logo depois eles tinham adquirido o edifício ao lado do atual La Argentina e montaram a loja em 1972, nomeando-a em homenagem ao país natal de Di Pilla.

Quando ela morreu, Di Pilla manteve o lugar aberto como um lugar para encontrar amigos. Hoje em dia seus filhos cuidam da loja e dos edifícios comerciais, que segundo a sua filha são ocupados totalmente por imigrantes latinos.

Esta história foi publicada no Mission Local pela primeira vez em 9 de agosto de 2009, sendo atualizada por Andrea Valencia em maio de 2014.

18.6.14

Urbanismo Emergente e o IV Distrito



Semana passada tive o prazer de estar em Porto Alegre falando um pouco sobre Urbanismo Emergente e o IV Distrito a convite do Nós Coworking.

Na apresentação falei um pouco sobre o conceito de Urbanismo Emergente, consequências não-intencionais do planejamento urbano centralizado e, para finalizar, um pouco da história sobre o IV Distrito de Porto Alegre e algumas sugestões para aumentar os processos de desenvolvimento emergente do bairro.

Pra quem não foi, segue a apresentação na íntegra.

17.6.14

Como construir clusters de inovação além da Califórnia

Esta é uma tradução do artigo "Turn Detroit Into Drone Valley" de Marc Andreessen, co-fundador do fundo de capital de risco Andreessen Horowitz.


A receita popular para criar o “próximo” Vale do Silício é mais ou menos assim:

- Construa um parque tecnológico grande, bonito e totalmente equipado;
- Misture laboratórios de P&D e centros universitários;
- Dê incentivos para atrair cientistas, empresas e usuários;
- Conecte a indústria através de consórcios e fornecedores especializados;
- Proteja propriedade intelectual e transferência tecnológica e;
- Estabeleça um ambiente e uma plataforma regulatória propícia para negócios.

Mas... essa abordagem de clusters de inovação na verdade não funcionou. Alguns ainda rejeitaram a ideia destes esforços liderados pelo governo comparando-os a um “óleo de cobra” dos tempos modernos. Mas o setor público está sempre procurando o próximo Vale do Silício por causa da proximidade entre inovação tecnológica, crescimento econômico e oportunidade social.

Esforços anteriores nestes clusters falharam por uma série de motivos, mas um grande motivo é que os esforços do governo por si só não atraem as pessoas. É por isto que um recente grupo de experimentos focaram mais em construir comunidades empreendedoras, hubs e distritos urbanos e hackspaces. Mas, de acordo com a expert Fiona Murray da Technology Review, ainda estamos divididos em como criar um ecossistema empreendedor: ora vamos agir de cima para baixo ficando principalmente em infraestrutura – ou de baixo para cima focando apenas nas redes. Nenhum destes esforços buscam com sucesso ambos caminhos ao mesmo tempo, com governo, academia e comunidades empreendedoras agindo em compasso, como foi no desenvolvimento do Vale do Silício.

Mas o setor público não deveria estar tentando copiar o Vale do Silício. Eles deveriam, ao invés disso, descobrir qual é (ou qual poderia ser) o setor específico da sua região – e em seguida remover os entraves regulatórias para aquele setor. Não queremos 50 Vales do Silício; queremos 50 variações diferentes do Vale do Silício, um diferente do outro, únicos e focando em setores diferentes.

Imagine um Vale do Bitcoin, por exemplo, onde um país legaliza completamente criptomoedas para todas transações financeiras. Ou o Vale dos Drones, onde uma região elimina as barreiras legais locais para veículos aéreos não-tripulados. Um Vale dos Carros Autônomos em uma cidade que permite experimentar com diferentes designs de carros que dirigem sozinho, vias redesenhadas e regras de segurança. Um Vale das Células tronco, e assim por diante. Existe uma diferença chave do argumento “se-você-construir-eles-virão” de épocas passadas. Agora o foco é entre gerar competitividade regulatória entre governos municipais, estaduais e federais. Há tantas categorias novas de inovação por aí e empreendedores ansiosos para ir atrás de oportunidades dentro de seu alcance. Repensar as barreiras regulatórias em indústrias específicas atrairia mais as startups, pesquisadores e divisões de grandes companhias que querem inovar na vanguarda de um setor específico – enquanto ainda exploram e abordam muitas das dificuldades regulatórias ao longo do caminho.

Por que esta abordagem? Comparado com esforços anteriores de clusters de inovação onde governos tentavam algo artificial, esta proposta surge daquilo que governos fazem melhor: criar, ou melhor, relaxar legislações.

Outra vantagem desta abordagem é que é uma maneira de clusters se diferenciarem uns dos outros e competirem positivamente pelos recursos. Pense nisso como uma espécie de “arbitragem global” ao redor de inovação irrestrita – a liberdade de criar novas tecnologias sem precisar pedir aos poderes pela sua bênção. Empreendedores podem tirar vantagem das diferenças de oportunidades de diferentes regiões, onde inovação em um setor específico pode ser restrita em uma região, permitida e encorajada em outra, ou totalmente legalizada em uma terceira. Por exemplo, leis e normativas para usar drones ou taxar bitcoins já variam em vários lugares do mundo, assim como para o compartilhamento de caronas em cidades por todos os EUA.

Mas a maior vantagem da abordagem de termos 50 Vales do Silício diferentes não é só o que ela gera para empreendedores em regiões isoladas: é na aceleração da inovação no mundo inteiro. Remover regulações em regiões diferentes permite múltiplas categorias de inovação avançando de uma só vez, em paralelo, sem sofrer com os gargalos do tempo ou da distância.

Então quais são os riscos? Bem, sempre existe a real possibilidade de regiões avançadas “terceirizarem sua regulação” e expulsarem seu próprio risco às custas de regiões menos avançadas. Para avançar mais rápido, países mais pobres podem estar mais tentados a testarem coisas que países mais ricos estão excluindo com as suas cercas. Mas enquanto as inovações não gerarem riscos à vida – e muitos dos setores restritos não geram (as restrições normalmente protegem interesses vigentes) – um modelo como este permite uma maneira muito mais rápida e viável de regiões alcançarem as líderes. Especialmente quando você considera a vantagem que os clusters de inovação anteriores não tinham: o smartphone.

13.6.14

Copa do Mundo: legado de destruição

Artigo escrito para publicação na revista impressa do IAB-RS, também publicado em inglês no site Daily Caller.

Nunca passaria pela minha cabeça ver um campeonato de futebol como algo que pudesse ser destrutivo. A Copa do Mundo no Brasil, no entanto, me fez mudar de ideia: o que era para ser um espetáculo esportivo se tornou uma política pública - e um desastre social.

Comecei questionando a avaliação pública de que a Copa extrapola a esfera privada pela sua escala. É divulgada a ideia de que, sem desmandos de políticos, turistas gerarão caos em aeroportos, hotéis e no sistema de transporte, enquanto gangues preparam ataques criminosos, sendo um prejuízo enorme para a nossa imagem internacional. Mas não foi a própria interferência política que selecionou cidades despreparadas para os jogos? Quando o Brasil foi escolhido como sede, nenhum estádio estava de acordo com as exigências da FIFA, mas o governo prometeu um redirecionamento artificial de recursos públicos para adequar o que fosse necessário. Ou seja, não foi o caso que o evento privado extrapolou a sua esfera, mas o setor público que o considerou indispensável para sua política, influenciando na sua realização.

Mas digamos que o evento estivesse marcado sem interferência política, com os próprios clubes investindo na melhoria dos seus estádios. Será que veríamos uma catástrofe? Grandes aglomerações urbanas, sedes de estádios com tal preparo, são locais ideais para receberem grandes eventos. Metrópoles são resilientes neste sentido por contarem com relações cruzadas entre uma variedade de fornecedores e empreendedores. Os hotéis se preparam para o aumento da demanda ajustando seus preços para lotar sua infraestrutura com o máximo de eficiência. Proprietários de imóveis se cadastram em sites como o AirBnB, por onde podem facilmente serem locatários de curta duração. No entanto, o governo normalmente interfere nesse preparo, como a recente notícia do combate aos “preços abusivos” dos hotéis no Rio de Janeiro: um desconto obrigatório aos turistas, gerando insegurança para quem investe e empreende. O AirBnB também cai na irregularidade já que é comum a proibição de atividades comerciais em zonas residenciais, além de requerer a abertura de uma empresa para essas transações, inviabilizando o que era para ser algo rápido e acessível.

Caronas estão proibidas.
Recentemente, falando sobre a Copa, a presidenta Dilma falou que “é muito caro fazer transporte coletivo. Se não for parceria, ou se a União não botar dinheiro, não sai”. Mas seria apenas uma questão financeira ou existem outros entraves? Operadores de transporte coletivo e taxistas não podem aumentar o número de veículos nas ruas, criar rotas novas, e muito menos aumentar o preço de suas tarifas para equilibrar o aumento da demanda durante o evento. Empreender e inovar no setor de transportes, seja aéreo ou terrestre, é uma tarefa ora para os insanos ora para os poderosos, tamanha a barreira de entrada regulatória nestes setores. Pequenos empreendedores de micro-ônibus são comuns na região da Ásia-Pacífico ou da América Central, mas raramente são legalizados em cidades brasileiras. Além disso, aplicativos que permitem o compartilhamento de caronas são proibidos por serem uma ameaça às corporações de táxi vigentes. Por fim, no tocante ao planejamento da cidade como um todo, o maior desafio não está no investimento em infraestrutura, mas sim nas legislações municipais que regulam a forma urbana, a proximidade dos pontos de atração e a competitividade do sistema de transportes.

Assim, depois de direcionar o evento para cidades despreparadas e restringir sua adaptação natural, surgem as prerrogativas “econômicas”: a Copa do Mundo seria uma chance para o Estado “liberar” recursos para infraestruturas importantes, incentivando a economia. Mas as 41 obras de “mobilidade urbana" somam em torno de R$8 bilhões e compreendem em grande parte viadutos – indutores de tráfego ao prejudicar o pedestre e coletivizar os custos de quem usa transporte individual – e os BRTs, oo Bus Rapid Transport. A abordagem busca votos e não resultados já que a população, leiga em transportes, vê qualquer obra, independente da tecnologia ou do custo, como um benefício para a mobilidade urbana. Pouco é divulgado, mas o BRT (uma espécie de metrô de superfície usando ônibus no lugar dos trens) piorou o sistema de transportes como um todo em casos emblemáticos como Lima e Bogotá, onde já foi implementado. Um dos motivos foi a eliminação e a proibição de importantes rotas de ônibus e microôonibus do sistema antigo para gerar demanda para o BRT. Além disso, a centralização do sistema o torna frágil tanto à mudanças políticas como à alterações na demanda das rotas, garantidas para qualquer cidade. Para abordar um sistema complexo e descentralizado como o trânsito é necessário pensar em soluções que são, também, complexas e descentralizadas, ao invés de simplificadas e centralizadoras como as nossas obras de mobilidade. Além disso, qualquer sistema que requer a restrição forçada de seus concorrentes para uma boa operação será, desde a largada, um fracasso.

Uma visão do "legado" na China
Mas a grande “infraestrutura” que o país ganha são estádios de futebol que, segundo o Instituto Ethos, receberão quase R$9 bilhões em recursos públicos. E qual é a utilidade prevista para muitos destes estádios após o evento? Nenhuma, pois estão em cidades que simplesmente não tem torcidas ou times para ocupá-los. O “Ninho de Pássaro”, estádio construído em Pequim para as Olimpíadas de 2008, enfrenta exatamente o mesmo problema, e hoje organiza cômicos passeios de Segway para desesperadamente gerar qualquer tipo de retorno. O diretor do comitê organizador da Copa brasileira mostrou falta de bom-senso quando, ao questionado como evitaria os “elefantes brancos”, sugeriu utilizar os estádios para festas de casamento. Mais recentemente, a Arena da Amazônia foi considerada para se tornar um presídio provisório após o evento, uma improvisação em escala literalmente monumental.

Percebi, assim, que gastar dinheiro não significa gerar riqueza, muito menos resolver problemas antigos de uma nação. Com a Copa do Mundo, apenas aumentam-se as justificativas estatais para a centralização de poder e para a cobrança de impostos – de onde o governo tira seus recursos – e na verdade não existem impostos "presos" para serem "liberados". Assim, nossa economia não é “estimulada”, apenas redirecionada para outras finalidades, saindo da esfera das preferências pessoais dos cidadãos passando para decisões governamentais a nível federal.

Neste redirecionamento reina a ineficiência e a corrupção, pois uns gastam o dinheiro de outros, com a opção de arrecadar mais caso seja insuficiente: o contrário da lógica do setor privado, com exemplos que não poderiam ser mais claros. Obras como a expansão dos aeroportos de Curitiba e de Salvador, do estádio em Porto Alegre e as obras no porto em Fortaleza praticamente dobraram seu orçamento inicial. O Estádio Mané Garrincha, em Brasília, promete ultrapassar o custo de R$2 bilhões: já se foram R$1,78 bilhões e acabaram de licitar contratos de mais R$350 milhões para obras no seu entorno.

Casa marcada para demolição no Rio de Janeiro, do filme Casas Marcadas

No entanto, a tentativa de produzir um “legado” não tem apenas um custo financeiro, mas também social e de valor inestimável, talvez o maior de todos os prejuízos gerados pela Copa do Mundo. A Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop) em parceria com a ONG Conectas calcula que 250 mil pessoas serão despejadas de suas casas por causa das obras. A grande maioria mora em comunidades informais, com o azar de terem nascido em um terreno em uma área pública ao invés de uma área privada. Este fato por si só elimina seu direito ao usucapião, o título de propriedade da terra por ocupação e uso prolongado, direito que já teria sido adquirido décadas atrás caso a terra não fosse pública. Maioria das comunidades sofrendo com os despejos não são assentamentos recentes, mas verdadeiros bairros que já deveriam ter sido reconhecidos e formalizados muito tempo atrás. A mais antiga delas, do Morro da Providência no Rio de Janeiro, após um século sem receber seus títulos de propriedade nem qualquer tipo de investimento público, hoje recebe de R$75 milhões para a construção de um teleférico cuja principal função é a visita de turistas: ao invés de resolver os problemas é gerado um espetáculo para a elite, removendo as pessoas e as casas no caminho.

O documentário “Casas Marcadas” revela que a Secretaria Municipal de Habitação do Rio de Janeiro marcou centenas de casas com códigos para, em seguida, sem negociação ou qualquer contato pessoal, enviar retroescavadeiras para colocá-las abaixo. Propriedades vendidas nestas comunidades, mesmo restritas ao seu mercado informal interno e com construção precária, atingem valores de R$100 mil. No entanto, as indenizações públicas aos moradores que perdem suas casas - quando recebem alguma coisa - raramente ultrapassa de R$10 mil, uma escala de valor dez vezes menor. Não só isso, já são centenas as denúncias de violência e coerção da polícia aos moradores que desafiaram aqueles que tentaram tirá-los, mas sem sucesso. Agora imagine esta cena se repetindo, com poucas variações, por todas as cidades que se preparam para a realização da Copa do Mundo. Ao serem literalmente removidas, de noite para o dia, sem alternativa de moradia, se agrava a situação já assustadora de desigualdade e exclusão social que o país se encontra.

O governo brasileiro interferiu na Copa do Mundo para evitar um cenário caótico e para construir um “legado” para a sociedade. O resultado que se vê até o momento é o contrário do que se prometeu: caos e a construção de um legado de destruição.

6.6.14

O IV Distrito que Porto Alegre merece


Próxima segunda-feira (9 de junho) estarei no Nós Coworking discutindo com Marc Weiss sobre a revitalização do IV Distrito de Porto Alegre. O evento inicia às 19:30, é aberto e é gratuito, mas as inscrições devem ser feitas neste link.

Em preparo para o evento tive a oportunidade de ler a tese de mestrado da Arquiteta e Urbanista Leila Nesralla Mattar, chamada "A modernidade de Porto Alegre: Arquitetura e espaços urbanos plurifuncionais em área do 4º Distrito".

Lendo o texto me impressionei com a emergência não planejada do 4º Distrito, uma região que se desenvolveu através de sucessivos projetos e loteamentos privados gerando uma pluralidade incrível, de línguas, etnias e classes sociais. O local também tinha uma variedade de usos, sendo descrita pela autora como "bairro cidade", algo que urbanistas hoje tentam criar via regulamentação, com pouco sucesso.

Além disso, ficou ainda mais clara a decadência do bairro por motivos regulatórios, que restringiram sua capacidade de adaptação ao longo do tempo. Diz na página 313:

"... o Primeiro Plano Diretor da cidade (1959) previa um modelo urbanístico baseado no Zoneamento de Usos para toda a sua área, incentivando ou proibindo a localização de certas atividades nos seus diversos setores; para o bairro Navegantes, foi referendado a vocação industrial, em quase toda a sua extensão. Nesta época, já eram evidentes os efeitos do processo de metropolização da capital, com os deslocamentos de algumas indústrias e operários fabris, para cidades vizinhas. A década de 1950, foi a de maior crescimento demográfico para a capital, cuja população passou de aproximadamente 380 000 habitantes, no início do período, para 626 000 habitantes em 1960.

Assim, em face a este contexto, já era premente a necessidade de um Plano Diretor formal para Porto Alegre. No entanto, segundo alguns autores, o plano de 1959 mostrou-se conservador no que se refere à regulamentação de situações ou tendências de crescimento existentes. Por outro lado, sinalizava com algumas rupturas, como a visão “anti-industrial”, já que estabelecia limites rígidos para a instalação de atividades produtivas, contribuindo para a sua “desindustrialização”.

[Günter] Weimer, analisando os diversos “transtornos” promovidos por este zoneamento, aponta seu uso restritivo especialmente aplicado na implantação das fábricas que, não podendo se expandir, foram forçadas a transferir-se para municípios periféricos, onde estariam mais liberadas das exigências do plano, mas com prejuízos para o operariado. Em face do aumento de despesas com transporte, muitos se obrigaram a mudar para junto das fábricas, contribuindo para um desordenado crescimento das cidades satélites, além da consequente diminuição de impostos acarretados à municipalidade.

Desta forma, aproximadamente após os anos 60, o uso residencial entrou em processo de estagnação e descaracterização, modificando-se o conteúdo social da área, que, com a introdução de outras atividades, acabou sofrendo grandes transformações físicas, como o exemplo das transportadoras, que prejudicaram o sistema circulatório daquelas ruas. Posteriormente, com a criação do Porto Seco (1980), há um decréscimo destes estabelecimentos, já que muitos se transferiram da área. Assim, a sua vocação industrial, crescente na década de 1930, dinamizada na de 40 com os benefícios acarretados pelas obras de aterros do cais do porto e da abertura da avenida Farrapos, e prosseguindo nos anos 50, com a travessia sobre o Guaíba(1959), inicia nos anos 60, um processo de progressiva decadência, com o deslocamento das indústrias, ali estabelecidas, para outras áreas."

Isso significa que o bairro não ficou congelado apenas durante o Plano Diretor de 1979-1999, mas já 20 anos antes. Ou seja, foram 40 anos de zoneamento industrial sem uma vocação clara para esta atividade específica na região.

Na revisão do Plano em 2000 a região foi alterada para "Uso Misto", mas outras regulações ainda impedem a sua regeneração natural, que será tema da minha conversa no evento. Também pretendo mostrar exemplos de outras cidades que buscaram ou buscam simplificação legislativa como uma forma de transformação, removendo obstáculos ao invés de criar novas regras e incentivos.